Quando o vento espalhou os gravetos sobre a sombra da tarde no terreiro da fazenda, a última rés chegou ao curral. O Sol desmontava o dia, lentamente.
De cima do cavalo, em pé sobre o estribo, o Vaqueiro contou os
bezerros apartados. Pouco antes, o Vaqueiro escutou o mugido, suportou vento e
sol, até avistar o boi de entralho, fujão. O animal estava por trás da serra
coberta de jurema, baraúnas e xique-xiques. Foi atrás. Laçado, o garrote preto
estrebuchou sob a pata do cavalo. O boi foi levado para junto da boiada, já
acomodada no curral.
Antônio David Diniz
Era entardecer com uma nesga de nuvem cinzenta que passeava
pelo céu. No capão de mato a algumas braças distantes, a sinfonia dos pássaros
saudava o anoitecer.
O Vaqueiro desmontou a veste grosseira e poeirenta. Guardou o gibão, o
parapeito, perneiras, luvas, jaleco e chapéu. Banhou e alimentou o cavalo, que
à sombra do juazeiro pernoitou.
Silencioso como os lugares ermos de onde chegou, o Vaqueiro recolheu-se aos
aposentos do alpendre, com o vento morno espalhando as labaredas da lamparina
colocada numa tabuinha suspensa na parede.
Repousou o espinhaço na rede. Aquietou-se. Repassou todo o dia de labuta. Até
pensou na moça que tinha visto na saída da missa na capela na noite de São
José.
Março corria sem chuva. Em volta, tudo seco, esturricado. O Sol poente
avermelhava a planície em sua volta.
Antônio David Diniz
Lembrou-se da labuta diária nas caatingas, comendo carne seca
de bode com farinha guardada no bornal. Bebia a água do bornal que conduzia à
tiracolo.
As aguadas secaram e a terra rachada consumiu a brisa fresca na madrugada.
Ao cavalo e o gado restaram como alimento os ramos da poda da catingueira, da
jurema, do angico transformados em feno. Como último alento, queimou mandacaru
e xique-xique que restavam.
A vegetação esturricada é seu berço. Se criou nessa vegetação seca.
No veranico de janeiro buscava nas encostas a babugem para alimentar o rebanho.
Estava salvo o que restou de rés, bodes e cabritos. Era tempo de inverno, mas
as nuvens não indicavam inverno. O Vaqueiro lembrou-se do dia de uma longa
peleja para conduzir o gado de volta ao cercado de pau-a-pique. O graveto de
umburana não rasgou seu rosto, mas deixou marcas invisíveis que os olhos
captaram. As rosetas das esporas cintilando no topo do meio dia trouxeram
lembranças do tempo de criança quando montava em cavalo-de-pau para derrubar
bois imaginários.
Antônio David Diniz
Findou mais um dia de peleja. Em redor do juazeiro restou a
paisagem desnuda, onde outrora bebia água usando o chapéu de couro como cuia.
Vaqueiro e montaria, unidos pela mesma sina. Frutos da mesma caatinga
espinhenta. No emaranhado de cipós tantas vezes perseguiram rés sem medo do
abismo. Os espinhos não atingem cavalo e cavaleiro devido o peitoral de couro.
Atrás do boi, às vezes o cavalo mergulha sob os galhos afiados, saltando
gravetos rasteiros, com o vaqueiro abraçado ao pescoço. Por onde passam os três
– vaqueiro, cavalo e boi – fica a vereda aberta e os galhos quebrados. A obra
de arte do Vaqueiro se completa quando executa a pega do boi na caatinga. Este
a passo lento chega à fazenda no imponente cavalo e traz amarrado pelos chifres
o tourinho que não esperneia.
A vitória da labuta diária está completa. Resta a rede para repousar e a viola
para dedilhar.
O Vaqueiro do Sol e o Cavalo, ambos, empunham o estandarte da Majestade do
Sertão: o empoeirado Gibão.
* Dedico este texto a Antonio David pelo registro fotográfico sobre a lida dos Vaqueiros nas caatingas da Paraíba
José Nunes Poeta/ Escritor