Cidadezinha acanhada do alto sertão da Paraíba, espremida entre o Ceará e o Pernambuco, pelos idos dos anos sessenta, Conceição do Piancó, padecia à míngua de justiça social e foros de civilização. Diversão não existia, uma vez ou outra, apontava por lá um circo, daqueles de ponta de rua, e fazia a festa da garotada, e também de toda a população do lugarejo. A chegada de um circo por lá, por mais humilde que fosse, era sempre um acontecimento marcante. A população ficava ouriçada, não se falava de outro assunto.
A televisão engatinhava, contava-se nos dedos, somente uns poucos abastados possuíam o aparelho em preto e branco.
O radinho de pilha era o único meio de se estabelecer contato com o mundo lá fora.
Foi por essa época, que o senhor João Nunes, pai
da cantora Elba Ramalho, e de outros descendentes ilustres, homem de visão
aguçada, pioneiro, tomou a iniciativa de instalar uma sala de cinema na
terrinha (naquela época era comum cinema em cidades do interior, em Cajazeiras,
por exemplo, havia três: "Cine Éden, Apolo XI e o Pax", esses dois
últimos pertenciam à diocese). Para quem não sabe, o senhor João Nunes era uma
figura singular, trajava paletó e gravata, de manhã à noite, de segunda-feira a
domingo, e não dispensava o chapéu de massa.
João Nunes Facebook
Homem prático, não deixava nada para depois, pôs
logo a mão na massa. Adquiriu um prédio na rua principal da cidade, carreou
gente de fora para cuidar da reforma e adaptação, já que ali ninguém manjava do
negócio, para a maioria dos viventes, essa história de cinema era bicho de sete
cabeças.
Prédio pronto, reluzente, o cheiro de tinta, a placa na fachada, ostentava: "Cine São João", o telão branco, a bancada preta, o projetor estalava de novo. Partiu-se então para o ato inaugural. Um acontecimento memorável, para entrar para os anais da terra.
Faltava agora, o principal, o rolo de filme, e esse chegou de Campina Grande, um dia antes, pelo ônibus de linha.
Na cidade a expectativa tomava conta, contavam-se os dias, as horas e os minutos, ninguém falava em outro assunto; na praça, nas esquinas, nos salões de jogos,
nos botequins, cinema era o tema recorrente. Esqueceu-se da seca brava que assolava o sertão, da politicalha, adversários ferrenhos se abraçavam jubilosos, a baba grossa, pegajosa, escorria do canto da boca, noiva esqueceu o casório. Euforia de vaca esquecer bezerro, como diria um amigo.
Quando o sol começou a despencar no poente, a fila barulhenta já se enroscava por vários quarteirões. Gente de se perder de vista. Muitos queriam saber como era, o que iriam assistir, aquele pano branco espichado na parede lá na frente Os mais entendidos, viajados, instruíam a arraia miúda. Para as autoridades e as famílias tradicionais foram reservadas as primeiras cadeiras, a plebe ignara se acomodou como pode. Muitos assistiram de pé.
Quando a luz se apagou e a imagem sonora surgiu na telona, sentiu-se um friozinho na barriga, uns se entreolhavam desconfiados. Em alguns momentos mais tensos do filme, houve sobressaltos, compreensível para a ocasião. Muitos se debruçaram trêmulos, quando Roy Roggers acossado por bandidos no velho oeste sacou a arma infalível e mandou bala. Logo se aquietaram.
Aos poucos se iam entendendo com a estrovenga, o cinema se tornou familiar, fazia parte do dia a dia. Já esmiuçavam o estilo, a direção, tinham seus gêneros preferidos. Tratavam Rocky Lane, Hapolong Cassidy, Roy Roggers, Zorro, o detetive Dick Tracy com intimidade.
"Cinema ainda é a maior diversão".
Carlos Henrique Leite